Musa Velha
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Publié le 08 décembre 2010
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Langue Português

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The Project Gutenberg EBook of Musa Velha, by Francisco Palha This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net
Title: Musa Velha Author: Francisco Palha Release Date: January 31, 2009 [EBook #27940] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MUSA VELHA ***
Produced by Pedro Saborano
MUSA VELHA
Porto: 1883—Typ. de A. J. da Silva Teixeira 62, Rua da Cancella Velha, 62
FRANCISCO PALHA
MUSA VELHA
    PORTO ERNESTO CHARDRON, EDITOR 1883
    
  
Virgem dos olhos negros, se em tua alma memoria inda conservas d'outro tempo, só tu entenderás porque este livro ousa ás trevas fugir, e o sol encara; mas como quem escreve e quem publica não perde tempo, nem dinheiro gasta para teus ocios entreter sómente, deixa-me vêr se á força de assignantes, de venda avulsa, exemplares de mofo, ha mais no mundo quem me entenda e leia.
MUSA VELHA
DONA MORTE
Deu na tonta de entrar na minha escada  á Dona Morte um dia.  A pobre anda estafada do continuo ceifar desde que ao nada por divinaes processos da alchimia  a terra foi roubada. *                Da comprida queixola desdentada esta sentida nenia lhe saía:  —Senhor! forte estopada! Sem poisar a caveira o mundo corro. Em toda a parte estou. A toda a hora prostro alguem a meus pés, e geme, e chora por minha culpa alguem! Nenhuma aurora,  de luz nenhuma o jorro, as orbitas vazias me alumia!... Nunca uma esp'rança! nunca uma alegria! Á dôr alheia pondo um suave termo só a minha o não tem!... Só eu não morro emquanto o mundo não tornar um ermo!... Á obra! Á obra!—   E lepida subindo  tocou a campainha: um lugubre tocar que dava medo; que não mais deixarei de estar ouvindo, e fez com que eu então, muito em segredo,  rezasse a ladainha. *                Era um simples aviso, pois que a porta por si se escancarou e deu entrada  áquella feia ossada de vermes revestida, e negra, e torta, de mim ha longo tempo enamorada.
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 —Senhora Morte, viva! disse ao vêl-a, fingindo animo forte; mas cá por dentro, como a sensitiva n'haste as folhas retráe que lh'as não córte  quem d'ella se aproxima e levemente a mão lhe põe por cima, cá por dentro a minh'alma, em pasmo estranho por vêr-se em tão cruel extremidade, foi-se encolhendo até ser do tamanho  d'um reles feijão frade!                *  —Desculpe a impertinencia— continuei.—Como é que usam tratal-a?  Por tu? PorExcellencia como é hoje tratada toda a gente?—  «A mim é-me indifferente. Não faz ninguem de tal miseria gala no reino onde eu impero.»  Esta resposta me deu a Dona Morte, e junto ao leito, onde eu espreguiçava a mandrieira,  chegou; puxou cadeira; sentou-se gravemente, sobreposta uma rótula n'outra.  Com effeito mau é vêl-a!... peior á cabeceira! E poz-me a fria mão aqui no peito. «Que bons pulmões tens tu! e como pulsa  na tua idade o coração ainda pelas paixões mundanas agitado!» —Então...—volvi com voz menos convulsa— inda tenho a viver um bom bocado?!—  «Conforme. Tudo finda quando me apraz e breve.»  —Se ao teu lado para afastar-te eu não chamar a Siencia.— «Dou-te um dôce que a chames! Cáe tu n'essa! descobriste a maneira, tem paciencia, de eu carregar comtigo mais depressa.» —Banal! Banal! Cuidei que era outra coisa— rosnei com meus botões.—Um vende bolas, um palurdio qualquer vindo de Loiza, da Lourinhã, do inferno, esta sandice ancho diria qual a Morte a disse. *                Ella no entanto, um pé bamboleando, co'as phalanges dos dedos descarnados batendo sobre a tibia, ia soltando  uns sons de castanholas com que sóe convocar gatos pingados ás grandes, funerarias cabriolas.  Após pequena pausa de subito se ergueu.  «Não ha remedio!  Deixar-te vou por causa d'uns ganchitos que tenho aqui no predio. O cónego não dorme ha tres semanas. Rouba-lhe o ar a suffocante angina  que o peito dilacera. Tem esgotado as provações humanas. Na longa vida santamente austera fez jus, coitado! á compaixão divina.  Melhor que o da morphina, premio á virtude, um somno lhe preparo brando, quieto, sereno como um lago. Apanha o padre agora! e apanha, é claro, quem lhe abichar na Sé o logar vago. O conego aviado, tenho uns planos de ir tocar no ferrolho ao conselheiro. Quero abater-lhe a prôa!... Setenta annos  e sóbe inda lampeiro outros tantos degraus!... Então córado!  redondo!... Uma cereja!...  E como se espenneja quando vae pela rua engravatado, para as moças olhando ás furtadellas como quem diz:Assim quisessem ellas! Chucha um pisco ao jantar; um pisco á ceia.  Por não dormir de tarde
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nem trazer nunca a barriguinha cheia considera-se livre do meu jugo  e d isso faz alarde! ' Pois tu vaes vêr, fradinho de sabugo!»  Travou da arqueada foice; disse-me:—«Adeus! Eu volto. Eu volto. Espera»:  virou a espinha, e foi-se.                * Sim, que te espero! Aqui te aguardo, ó fera! *                Mal passado um minuto, instantes, penso, portas a abrir-se, gente que subia resmoneando latim, e cheiro a incenso. oopoponaxda velha liturgia. Desci. Curvei-me. Bemaventurado aquelle que tem fé! Como um soldado, firme em seu posto o conego morria.                * Volto a casa. Corri logo á janella. Nos amplos ceus azues esmorecia a luz d'um sol d'abril. Do floreo seio perfumes exhalava a Primavera fallando-me por modo que a entendia. Quanto distava, quão diversa que era  da outra scena aquella! Então clamei:Em ti, meu Deus, eu creio! Um mez depois alguem contar-me veio: —Lá puxou o visinho aqui do lado! Hontem, depois do chá e o rol escripto, saíu da mesa, deu-lhe uma tontura, rodopiou, caíu na sepultura co'a paz na consciencia e o palito no canto inda da bocca!—  No outro dia foi-se o bom conselheiro, encaixotado,  direito ao cemiterio.  Na turba que o seguia havia quem dissesse:Um homem sério!  E tudo era acabado.                * Chega-me agora a vez. Prompto! Presente! Prompto sou a marchar!... mas descontente. Não que eu tema morrer. Quem morre inteiro? Aquillo que me assusta, o que me aterra é sómente a lembrança de que á terra, tal qual se semeasse fava ou trigo,  o bruto do coveiro cantarolando, atirará commigo! Eu, que respiro ao sol da liberdade, fechado n'um segredo humido, immenso, frio, escuro, por toda a eternidade! Preso... amarrado ali! Meu nome inscripto n'um livro negro, em folhas côr d'ict'ricia, como se inscreve em notas de policia o nome do gatuno a quem o apito tranquillo não deixou bifar um lenço! Numerado inda em cima! numerado como um grilheta!...O cento e trinta e cinco. de cestos de cal virgem carregado p'ra todo o sempre n'um caixão de zinco!... *                Não estou pelos autos. Não!... Protesto. Quando a morte vier por este resto, d'homem... de coisa... nem eu sei ao certo isso que fui, que sou, para o que presto: quando ella pois vier, e virá cedo...  e vem... que a sinto perto, ordeno que me estendam n'um penedo da minha amada Cintra. Redivivo,  á luz serena e ura
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dos puros ceus, o misero captivo reabrirá seus olhos porventura! Inda lá teu amor, tua belleza, a força me darão, trestresasnhliel, para affrontar a idade, a natureza, e triumphar do Eterno!  Com certeza que nem sequer, leitor, tu adivinhas, nem eu jámais direi de quem se trata. Bem o desejas tu, lingua de prata! Era um maná! *                 Ó sombra que fugiste, que sem cessar procuro em toda a parte  e não encontro nunca, porque é que tu não voltas, e d'est'arte de saudades a Dôr, teimosa, junca  o meu caminho triste?! Agora ao menos, anjo expatriado,  em que eu por ti resumo n'uma lagrima só as que hei chorado dês que te dei minh'alma até est'hora, porque é que tu não vens mostrar-me o rumo  do ninho teu d'outr'ora?! Vem! e guia-me tu n'este momento á dôce paz do suspirado porto! Foste na vida o meu maior tormento... Ai! Sê na morte o meu maior conforto!
POR FIM...
Tu queres, Dorinda, queres que eu tome os banhos da igreja?! Não será melhor que esteja de noite a fazer colheres, de dia a apanhar carqueja?! Pelo ceu! que o matrimonio não é mais que pellourinho, d'onde as barbas do visinho vemos ardendo! demonio disfarçado em Cupidinho. O outono com seu cortejo de folhas seccas no chão! O eterno adeus á illusão! O ultimo som do harpejo que Amor tira ao coração! O susto! a agonia! o trance de ir vivendo sempre á espreita se ha quem tornar-nos alcance, pois tal historia deleita, altosheroes d'um romance. E queres, Dorinda, queres que eu tome os banhos da igreja?! Para quê? Para que veja que entre todas as mulheres uma existe que sobeja?! Não! e não! Viva o solteiro! Aguia voando no espaço sem ter certo o paradeiro, e cravando as garras d'aço nas pombas que vê primeiro! Sae, e entra, e torna fóra sem que ninguem lhe interrogue onde foi, qual é a hora, nem pecuinhas lhe jogue sobre a provavel demora; Sem que a esposa ciumenta, Furia, Medusa, tormenta de más caras, más respostas,
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invente o que o diabo inventa: dormir-se costas com costas. E, depois, Madame Aline rôa as unhas! Que se fine entre rendas d'Alençon! que o meu dinheiro não tine p'ra que tu andes no tom! Já vês que debalde queres que eu tome os banhos da igreja. Iça o pau da carangueja! Nos turcos os escaleres, e para o largo veleja! Mas tambem... viver sósinho! Sem fé... perdido... sem ninho... Sem se erguer uma só voz na aridez d'este caminho a Deus orando por nós!! Retornando ao lar deserto achar tudo atrochemoche!... O bahu sem chave e aberto dizendo ao larapio:—Entrouxe, que você é que é o esperto!Sempre mal fervida a sopa! Sempre o café mal torrado! Feita a passagem na roupa deixando o dono enleiado se foi a agulha se a choupa! Se ainda, Dorinda, queres que eu tome os banhos da igreja, não descances na peleja, que eu sou como os malmequeres: não e sim. Louvado seja! Ai! que é bom durante os ocios, na fortuna e na miseria, achar ao lado uma Egeria que, em se fallando em negocios, não tuja sobre a materia; Que seja como a romana, meio amor e meio roca; não sáia nunca da toca mais que uma vez por semana, nem tinja o cabello d'óca; Nem, quando a afiada foice da vida o fio nos córte, de rijo invective a Sorte, e diga baixinho:—Foi-se! Quanto és minha amiga, ó morte!E d'aqui outro consolo melhor que maracujá e que o dôce de tijolo: ter quem, a rilhar n'um bolo, nos julgue e chame papá! Loura criancinha meiga, para o pai mimo celeste, e para o estranho uma peste que emporcalha de manteiga as calças que a gente veste. Inda agora é que eu reparo nos teus olhos, creatura! São negros... d'um negro raro! Negros como a noite escura com seus quês d'um sol bem claro! Alto o seio e pura neve que mil desejos excita! O pé delgadinho e breve; e quanto a mão... Deus permitta que a não tenhas muito leve. Dá-me o teu braço, Dorinda. Vamos aos banhos da igreja. Certo é que não graceja
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quem diz que os refrescos, linda, curam toda a brotoeja.
CARTA
ao Conde D'Almedina, Inspector da Academia Real de Bellas-Artes, que no estrangeiro sollicitou uma commenda para o author Tratante d'inspector, cuidei-te amigo e sácas-te a mangar assim commigo! Traição! insidia! roubo! Eu, um pelintra que nem posso comprar um burro em Cintra, onde a commenda magna em chammas brilha sobre o manto azulado de escumilha que Deus usa no v'rão, e a natureza ironica sorri da pequeneza d'esta baixa comedia, eu—velho! eu—calvo! á publica irrisão a servir d'alvo?!... Qual foi meu crime? Qual? Era deveras menos duro entregar-me inteiro ás feras. Ridiculo não ha na gente morta. Fôra uma vez um Palha!... A questão corta e não se falla mais.—  Por não terguines, tratante d'inspector, não me apepines. Eu amo a sombra fria. Odeio a moda. No bulicio d'um baile anda-me á roda a caixa do miolo; um labyrintho onde, perdido, entontecer-me sinto. Moem-me as praxes; pesam-me etiquetas, e tudo sei rasgar... menos baetas. Por mais que mire uns outros enfeitados, tão contentes de si, e tão coitados que julgam ser alguem!, não sei... não acho nem honra nem razão no berbicacho dourado, reluzente, sol d'esmalte, do qual em cada raio não ressalte, ante luz de gloriosa eternidade, um feito illustre a bem da humanidade. D'outro modo o que é? Um mau bocado de pão de rala a cães famintos dado: d'um réles charlatão a taboleta, na qual, quem passa, lê:Dom Paparrêta! ou lê inda peior!  Mette-me á bulha, terás aqui o rol de quanto pulha grandese fez tal qual se torna grande o bácoro a fossar e a comer lande. Ai! no me pique usted!Sob o arminho busca, e talvez encontres pergaminho lavrado a ferro e sangue, fresco ainda, nos coiros fuscos de infeliz cabinda. Nem titulos pomposos nem veneras valem dez reis furados n'estas eras. Hoje o premio a heroes dá-se ao dinheiro. Importa lá se é falso ou verdadeiro?! Comprou? Correu? O mais é tudo historia. Nem o nome villão fica em memoria. Uma coisa é escalracho, outra—papoila. Onde era a nódoa poz-se a lentejoila. Ha excepções, bem sei. Dou-lhes apreço. Morro d'amor por essas que eu conheço; mas como a estes raros não pertenço, e menos inda aos outros, o bom senso manda que eu te agradeça os teus favores e ria da mercê.  Quando tu fores, saudade ao peito, encasacado, sério, despedir-te de mim no cemiterio, verás que desço á terra, oh! vista horrenda! nusinho tal qual vim; e por commenda inerte o coração, gasto da vida na rude, pertinaz, obscura lida. Tu mesmo então, artista d'olho fino,
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dirás á turba:  «Emfim o peregrino na paz eterna vai dormir agora! Andou mettido a vida inteira á nora d'este poço sem fundo de miserias. Abusava do riso, das pilherias, e d'outras coisas mais em que não fallo. Foi Job em vez de ser Sardanapálo. Umaraiada Sorte. Ella faz d'isto: dá impérios ao démo, a cruz ao Christo. Mas resta-nos, amigos, um consolo: tudo seria... excepto um grande tolo.»
REQUERIMENTO
 Meu Couto Monteiro,  senhor da Justiça que nunca, que eu saiba, saíu do tinteiro, e pae dos famintos que engolem á missa o corpo sem mancha do santo Cordeiro.  Não rondo as arcadas  fazendo-te esperas.  Não subo as escadas que ascendem aos atrios das altas espheras, levando no bolso memoria sebenta que ha mais de mil annos requer um despacho, nem ponho o toutiço, já calvo aos cincoenta,  em ar de tapete,  em ar de capacho,  no teu gabinete. Só quero dizer-te que tenho defronte  da casa onde habito  um sino maldito.  Não sei se t'o conte... De dia, de noite, ao sol, ao luar,  não faz outra coisa  senão badalar!  Nem elle repoisa nem deixa na rua ninguem repoisar!... Ha quem me assevere que o demo mofino  montado no sino  se foi baloiçar!... Baloiça-te, pêrro! Engendra um badalo  do vil pé caprino  e dá-lhe um estalo!  e dá-lhe a matar! Não tremas, sabujo! que o sino foi bento; mas sabes que as bençãos são cruzes no ar;  levou-lh'as o vento. Entrasse em teus ossos o meu rheumatismo; roesse a medulla; por noites e dias chumbasse-te o corpo n'um duro colchão;  então saberias,  ó filho do abysmo,  verias então  se assim te mexias!  O caso é que tu commigo caçôas e ris dos doutores,  pois nunca tens dôres, e nem te constipas! e, mais, andas nu! Parece impossivel! Dá volta á cabeça! Eu cá, homem serio, que gema e padeça;  que em vindo janeiro me rape um catarrho!... E haver um brejeiro  que passa o inverno  sem chuvas nem lamas!  quentinho nas chammas  do próvido inferno!  rival do Eterno! eterno elle mesmo! Sagaz Providencia, e és da justiça, do amor és a essencia! Bem sei que o tal sino foi feito, fundido na terra dos cirios, da Carta, do hymno,
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 d'aquelles quarenta  de pêllo na venta  que ao reino opprimido quebraram algemas d'um jugo ferino; e a Carta era um mytho, são presas do olvido os nomes e as glorias de heroes legendarios se os sinos dormirem nos seus campanarios  qual dorme a memoria dos feitos illustres nas sombras da Historia. Ó Couto Monteiro, se a Carta está morta,  o que é que lhe importa, que importa aos guerreiros em pó transformados,  que toque ou não toque nas torres da Graça, da Sé, de S. Roque, o sino importuno masurkas e fados?! Nem isso os aquece, nem ha desafôro qual este que os templos agora profana passando dos palcos aos orgãos do côro, aos sinos de igrejas, a copla mundana. Nem tu me perguntes: «Quem é que armarieis  com mais alegria que o meigo innocente, do somno lethal  que á treva o prendia, nos braços do Christo resurge immortal? Qual voz, como aquella, dos vivos implora por alma dos mortos a prece final?» Por isso!... por isso, meu Couto Monteiro! O vil não repica, nem geme, nem chora, senão por aquelles que teem dinheiro! Que nasça, que viva, que durma na valla quem é pobresinho, sem festas nem dobres! O sino só tange conforme a tabella, só diz:—Baptisou-se, dos mortos só falla  se o manda osob'rano  do reino dos cobres,  a libra amarella! No ceu, felizmente, vigora outra escala na qual os primeiros são elles—os pobres, e poucos ricassos, que vão por engano. Se és, qual eu julgo, christão verdadeiro.  Meu Couto Monteiro, é justo que ponhas no prego o sineiro  que á patria com fome  propines uns nacos  de sino em patacos:  verás como os come.
PREFACIO D'UM LIVRO INEDITO
Mamãsinha impertinente, não te ponhas com tolices. Faze como se não visses se vires a filha innocente lendo as minhas criancices. Deixa vãs prohibições se este meu livro não queres escondido entre colchões, que é onde escondem mulheres livros, cartas, e... orações. Depois, o livro que ensina? Muita coisa boa e má que ha de fazer a menina porque tu, que és menos fina, as fizeste ao seu papá. E sendo condão fatal que a filhinha, que tu crias com pretensões a Vestal, siga o exemplo das tias pela influencia carnal; Ao vêr servir de palito n'este meu livro erudito
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tanta gente, ha de hesitar; e á cova irá de palmito... se a morte cêdo a levar. Deixa-te pois de tolices, mamãsinha impertinente. Faze como se não visses se vires a filha innocente lendo as minhas criancices.
MAL POR MAL...
Eu trago em minh'alma afflicta revolto mar de agonias. Tedio da vida os meus dias, as minhas noites, agita. Ó minhas crenças d'outr'ora, dôces amigas da infancia, a que longinqua distancia do meu peito andaes agora! N'esta cerração escura assim me deixaes sósinho! e sem que volteis ao ninho baixarei á sepultura! De mim te acerca bem perto, ó morte! No estreito abraço vôa commigo no espaço, leva-me d'este deserto! Mas se na mansão infinda, onde librar-me tencionas, nos dão as mesmas taponas com que a sorte aqui nos brinda; Se esguio velhote avaro n'essas alturas se encontra, com seu barrete de lontra, olhar e sorriso ignaro; De fallas mansas, beato para vêr se os santos pobres, saudosos dos magros cobres, lhe vão empenhar o fato; Se o operario, se o povo crê tambem que o mundo em ruina ha de saír da officina corrigido e mundo novo. E em lutas, que são eternas por lhe ser eterna a peia, quebrar pretende a cadeia e quebra a si proprio as pernas; Se n'esse logar bemdito pisamos a mesma lama que sobre a terra se chama O Asmodeu,—O Mosquito—; Se é Mercurio almiscarado o filho de Compostella; se por ventura um Alviella tem lá de ser encanado; Se o Milhão é quem impera; se se fez Deus o egoismo; se ha dôres de rheumatismo, e nas vinhas phylloxera: Fecha, ó anjo, as negras azas! que em tal apuro, olha o rente! tanto faz morrer a gente como mudar-se de casas!
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A UMA CREATURA
Que tens tu a dizer do teu destino? Que mal... que mal te fez, ingrata, a sorte? Desunhas-te a comer queijo londrino;  na polka és a mais forte; essa fulva cabeça de leôa não passa d'avellã; por isso és goso do bravo rapazio de Lisboa. Preludias nabanzaumrigoroso que os mortos ergue, as campas despovôa. Desmamadinho já, em salto airoso, balando, os longos ecos atordôa  o teu futuro esposo. Calçando o largo pé na estreita bota encaixaste o Rocio na Bitesga. Capaz és tu de entrar, sendo janota,  no ceu... por uma nesga. Trazes umdogueao collo... Tens na tia chaperone banqueiro. Anda estafada a velha e mais a burra. A orthographia comtigo, ao vêr as duas, não quer nada. Quem de môlho as barbas não poria vendo a barba visinha incendiada?! Dás á lingua durante o santo dia,  e bates na criada! A coisa mais feliz de quanto existe és tu portanto. E dás então cavaco, maldizes, blasphemando, o mundo triste!  e chamas-lhe velhaco! O mundo?! O mundo o que é? Por mim supponho ser apenas ironica pilheria que Jehovah soltou quando, risonho, pretendeu descansar de empreza séria. Ha n'elle o encanto espiritual do sonho. Ha n'elle o encanto vil da vil materia. Faz rir e faz chorar, o Triboulet medonho!  a divinal miseria! A graça toda está n'estasnuances; nas sombras e na luz com que prepara da dôr e do prazer os varios lances  o velho Dulcamára; Nunca viste Neptuno carrancudo pendurar-se nas azas da procella, roçar as cãs no ceu e em silvo agudo dar por mortalha ao barco a solta vela? Agora não o vês sereno e mudo como a brincar na praia se ennovella? Pois similhante ao mar no mundo é tudo.  Resigna-te, donzella. E tudo ha de acabar, o mar e o mundo. Até do meu amor a intensidade sumir-se irá no pelago profundo  da fria eternidade! Eu escrevi—amor?! Fiz mal. É grego; é grego para ti: peior,—sãoskrito; e tu nas linguas mortas não dás rego. Se um dia, por acaso, o pequenito traquinas e cruel, alado e cego, tentasse dar-te um golpe... era bonito! Fugiria a gritar:Armas que emprego  não entram no granito! Tu partilha não tens na dôce herança dos anjos que voaram! Antro escuro a tua alma será! Nenhuma esp'rança!—  nenhum extasis puro! Como quando ao romper da rôxa aurora deslisando na valsa doidejante soltas da trança a rosa que descora, de si te apartará n'um só instante o louco turbilhão que te enamora.
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