“Tudo cato”: as formas do circular no diárioQuarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus
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“Tudo cato”: as formas do circular no diárioQuarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus

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Este artigo visa explorar a articulação
das diversas formas do circular no
diário Quarto de despejo, de Carolina
Maria de Jesus. Partindo do circular
derivado do próprio ato de catar, o
artigo investiga como a circulação e
circularidade se manifestam desde o
nível dos transportes e movimentação
da população até a própria escrita do
diário e o direcionamento do olhar.
Este artigo propõe, por fim, que é
através da contemplação que a autora
consegue romper com a circularidade
que caracteriza sua existência marginalizada.

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Publié le 01 janvier 2012
Nombre de lectures 14
Langue Português

Extrait

Fernando de Sousa Rocha
Doutor em Literatura Comparada pela University of Southern California (USC)/EUA.
Professor Assistente de Português e Literatura/Cultura Brasileira em Middlebury Col-
lege. frocha@middlebury.edu
“Tudo cato”: as formas do circular
no diário Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus“Tudo cato”: as formas do circular no diário
Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus
Fernando de Sousa Rocha
resumo abstract
Este artigo visa explorar a articulação The main goal of this article is to explore
das diversas formas do circular no the interconnections between the diferent
diário Quarto de despejo, de c arolina forms of circulating in Carolina Maria de
Maria de Jesus. Partindo do circular Jesus’s diary Quarto de despejo. From the
derivado do próprio ato de catar, o circulation derived from the very act of
artigo investiga como a circulação e gathering, this article investigates how
circularidade se manifestam desde o the circulation and circularity are mani-
nível dos transportes e movimentação fested from the level of transportation and
da população até a própria escrita do people’s displacement to diary writing and
diário e o direcionamento do olhar. the direction of one’s gaze. This article pro-
Este artigo propõe, por fim, que é pounds that, in the last instance, through
através da contemplação que a autora contemplation the author manages to break
consegue romper com a circularidade away from the circularity characterizing
que caracteriza sua existência margi- her marginalized existence.
nalizada.
palavras-chave: deslocamento cir- keywords: circular displacement; circula-
cular; circularidade; escrita do diário; rity; diary writing; contemplation.
contemplação.

A relação entre fala e espaço, escrita e espaço, se faz crucial quan-
do buscamos entender vivências que se dão às margens dos lugares de
produção e consumo de bens simbólicos. É a fala ou a escrita que, como
espelho de nossa própria identidade, nos devolve o sentido de nosso estar
no mundo, ainda que necessariamente redimensionado pela distância que
se impõe entre nosso agir e a percepção que temos de nossa existência. Só
nos encontramos enquanto miragens de nós mesmos, parcas traduções
que forjamos, atravessados por nossos embates com o outro. Para os que
se situam à fímbria da sociedade, esta fala ou escrita não constitui apenas
o espaço simbólico no qual a existência passa a ser reconhecível tanto para
o sujeito que fala quanto para os outros a quem se dirige. Este espaço de
fala e escrita, às margens, confui com as práticas de ocupação do espaço
físico―sem as quais a existência beira a inexistência―, com o mover-se
dentro de um espaço que é socialmente determinado. É neste sentido
que poderíamos falar de uma poiesis peripatética em relação à escrita de
carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo, já que a escrita do diário,
circular por natureza, se sobrepõe à sua vivência espacial. respondendo
168 ArtCultura, Uberlândia, v. 13, n. 23, p. 167-178, jul.-dez. 2011à atividade de catar papel, ferros ou comida para sustentar seus flhos e a
si mesma, a movimentação de carolina pelo espaço urbano caracteriza-se
por um circular. Neste ensaio, busco analisar como, a partir deste circular
espacialmente, a escrita caroliniana articula uma gama bastante ampla
de circulações e circularidades, que vão desde uma percepção das movi-
mentações dos bondes e transeuntes paulistanos até a escrita mesma do
1diário e os direcionamentos do olhar. Se Carolina por fm vislumbra uma
possibilidade de escapar à circularidade trágica que marca a sua vida em
quase todos os níveis―alimentício, econômico, espacial, discursivo―, isto
não se dá apenas através da produção espacial, como a propõe Michel de
certeau. Acima de tudo, a apropriação caroliniana dos textos literário e
urbano está pespontada por uma produção espacial inesperada: a detenção
do movimento, a estagnação narrativa para que o espaço se abra à contem-
plação da autora-catadora.
Circular: espaço e capital
Desde a primeira entrada em seu diário, carolina menciona a sua
ação de catar papel, a qual a obriga a abandonar o espaço doméstico para
1 percorrer o urbano, ou melhor, para encaminhar-se a certos locais dentro A grande fgura literária per-
2 tencente ao que poderíamos da cidade, seguindo um “roteiro habitual”. Nestes locais, prevê encontrar
chamar uma poiesis peripatética
sobras, restos de um consumo exacerbado, característico de grandes me- é c harles Baudelaire via Walter
trópoles como São Paulo, ou realiza transações econômicas. Em troca de Benjamin. Não caberia, neste
artigo, uma possível leitura dinheiro, oferece materiais reutilizáveis―como papel, latas ou metais―
analítica de carolina Maria de
ou sua própria força de trabalho. Assim, no seu Manoel é onde carolina Jesus lado a lado com Baudelai-
re. No entanto, à primeira vista, vende latas e metais; na d. Julita trabalha como empregada doméstica; e
os dois parecem divergir quan-
na Klabin consegue papel para vendê-lo mais tarde. São pois locais urba- do mais se tocam. Baudelaire
nos no sentido de que guardam em si as regras do que é próprio, como encontra “o lixo da sociedade
nas ruas e no próprio lixo o seu 3propõe Michel de certeau. ou seja, são locais porque se acham extrema-
assunto heróico” (BENJAMiN,
mente ordenados, constituindo-se de elementos cada qual situado em seu Walter. Charles Baudelaire: um
4 lírico no auge do capitalismo. próprio lugar, que os defne em relação aos demais. o local de coleta de
3. ed. São Paulo: Brasiliense,
papéis, de ferro ou de comida, por exemplo, é também o local da ordem, 1994, p. 78), transformando a
na qual Carolina é defnida como catadora, mendiga, miserável ou como rua num refúgio a medida em
que abandona a sua existência destituída de posses, bens ou capital. Que a cidade não pareça querer se
burguesa (BENJAMiN, Walter,
dispor como espaço, apenas como uma série de locais, vem articulado na op. cit., p. 70); carolina, ao con-
trário, deseja abandonar a rua afrmação de Carolina de que tudo quanto encontra no lixo cata para ven-
para aconchegar-se no sonhado 5der. Espaço, ainda segundo de certeau, implica um local que nós, como conforto de uma casa burguesa.
agentes, reconstituímos em nossas próprias práticas de movimentação e 2 JESUS, c arolina Maria de.
ocupação deste espaço, que não pode manter a univocidade ou estabilidade Quarto de despejo. 9. ed. São
Paulo: á tica, 2007, p. 188. t odas do que é próprio, favorecendo, ao contrário, a polivalência inerente aos
as citações de Quarto de despejo
6confitos e negociações que se dão nas trocas e relações sociais. Espaço mantêm a ortografa e estrutu-
ras gramaticais originais.seria justamente a possibilidade de produção dentro dos locais limitados
3 pela ordenação do mundo social, possibilidade esta que de certeau busca c Ert EAU, Michel de. The
practice of everyday life. Berkeley: reconstruir em seus estudos sobre as práticas da vida cotidiana. há, como
University of california Press,
aponta o teórico francês, uma produção silenciosa―tão silenciosa como o 1988, p. 117.
ato de ler―, através da qual exercemos nossas práticas de uso e insinuamos, 4 Ibidem.
7em um universo pré-ordenado, uma reapropriação da ordem. Um local
5 JESUS, carolina Maria de, op.
converte-se assim em espaço. cit., p. 12.
No entanto, a observação de c arolina torna este manejo da ordenação 6 cErtEAU, Michel de, op. cit.,
local um tanto quanto ambíguo. catar implica uma procura insistente e p. 117.
7 atenta, através da qual selecionam-se itens e, com esta seleção, organiza-se Ibidem, p. xxi.
ArtCultura, Uberlândia, v. 13, n. 23, p. 167-178, jul.-dez. 2011 169
A r t i g o s8 É preciso lembrar aqui que o que poderia ser tão somente uma massa informe, um material amon-
estamos falando de fins dos
toado. Através de uma categorização daquilo com o qual se depara para anos 50, ou seja, de um período
quando ainda não havia uma consumo ou troca econômica―como, por exemplo, “isto é comível” e
grande conscientização em “isto não é”―, Carolina viria a ser uma “produt

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