Os testemunhos da tradução portuguesa da Historia Scholastica de Pedro Comestor: consequências ideológicas da selecção de fontes - article ; n°1 ; vol.33, pg 183-194
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Cahiers d'études hispaniques médiévales - Année 2010 - Volume 33 - Numéro 1 - Pages 183-194
En considérant les témoignages disponibles des traductions en portugais de la Bible et de la Historia Scholastica de Petrus Comestor, l’on analyse un court extrait de la Genèse dont on suit les effets idéologiques impliqués par le choix et ou l’omission de sources. Les données disponibles amènent l’établissement d’une relation stemmatique provisoire entre ces témoignages.
Considerando os testemunhos disponíveis das traduções da Bíblia e da Historia Scholastica de Pedro Comestor para português, submete-se a análise uma breve passagem do Génesis onde se verifi cam quais as consequências ideológicas provocadas pela escolha e omissão de fontes. Com os dados disponíveis, estabelece-se uma relação estemática provisória entre os testemunhos.
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Source : Persée ; Ministère de la jeunesse, de l’éducation nationale et de la recherche, Direction de l’enseignement supérieur, Sous-direction des bibliothèques et de la documentation.

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Publié le 01 janvier 2010
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Langue Português

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Os testemunhos da tradução portuguesa daHistoria Scholasticade Pedro Comestor: consequências ideológicas da selecção de fontes
Mariana LEITE
Bolseira FCT/Doutoramento SMELPS, Instituto de FilosoÞa – Universidade do Porto AILP (GDRE 671, CNRS)
RESUMO Considerando os testemunhos disponíveis das traduções da Bíblia e daHistoria Scholasticade Pedro Comestor para português, submete-se a análise uma breve passagem do Génesis onde se veriÞcam quais as consequências ideológicas provocadas pela escolha e omissão de fontes. Com os dados disponíveis, estabelece-se uma relação estemática provisória entre os testemunhos.
RÉSUMÉ En considérant les témoignages disponibles des traductions en portugais de la Bible et de laHistoria Scholasticade Petrus Comestor, l’on analyse un court extrait de la Genèse dont on suit les effets idéologiques impliqués par le choix et ou l’omission de sources. Les données disponibles amènent l’établissement d’une relation stemmatique provisoire entre ces témoignages.
Fruto de um labor que procurava o saber transversal e enciclopédico, as histórias universais redigidas sobretudo entre os séculosXIIeXIIIpro-curam retratar o Homem, o Mundo e a sua História, concebida sempre a partir da relação do humano com o sagrado. É por isso na Bíblia, nas suas glosas, comentários, interpretações historiográÞcas e teológicas que o género das histórias universais primeiro encontra as suas fontes dese-nhando, a partir dos contornos da história do povo eleito, os contornos da 1 história conhecida da humanidade. Tal é o caso daHistoria Scholastica, texto
1. Tal como a denominação indica, aHistoriaScholasticaé uma obra vocacionada para a formação de alunos, tendo com efeito começado por ser uma compilação das lições de
o CAHIERS D’ÉTUDES HISPANIQUES MÉDIÉVALES33, 2010, p. 183-194, n
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do séculoXIIredigido em latim por Pedro Comestor, professor da Escola de São Vítor em Paris. A obra consiste num longo e profundo comentário da Bíblia onde, a partir de transcrições literais daVulgatalatina, o autor aborda questões teológicas,ÞlosóÞcas, históricas, integrando também informações sobre o mundo antigo —com particular atenção para a his-tória de Alexandre Magno— e sobre o mundo natural. AHistoria Scholasticaconheceu uma larga difusão, à qual a Península Ibérica não foi indiferente. Em Espanha, conservam-se manuscritos latinos copiados no séculoXIII, provavelmente utilizados por Afonso X para a 2 redacção da suaGeneral Estória. Contudo, existe também um manuscrito latino datado do séculoXII, pertencente aos fundos da biblioteca de Santa 3 Cruz de Coimbra —o ms 112 da Biblioteca Pública Municipal do Porto . Ainda que apenas se possa especular sobre quando terá este testemunho tão antigo daHistoria Scholasticaentrado na biblioteca do mosteiro conim-bricense, é aceitável contudo pensar numa presença antiga desta obra em 4 contexto português e deduzir a sua inßuência sobre os meios clericais . Quando se analisa ocorpusdos primeiros textos redigidos em galego-português, uma das ausências mais notórias é a das traduções da Bíblia. Efectivamente, desde o séculoXII, em França, que se encontram bíblias em romance, do mesmo modo que, no séculoXIII, se assinalam alguns testemunhos de traduções para castelhano. Segundo Samuel Berger e 5 Carolina Michaelis , em Portugal não se pode provar a existência de ini-ciativas semelhantes na Idade Média, ao contrário do que é visível em Castela. A perspectiva de Berger, de 1899, marcou o trajecto dos estudos do séculoXX, tendo-se apenas alguns investigadores debruçado sobre a análise da inßuência da Bíblia nos primeiros textos em língua portuguesa, 6 7 em particular SeraÞm da Silva Neto , Mário Martins , Joaquim Mendes
Pedro Comestor. A sua clareza e profundidade, devidas ao seu propósito pedagógico, terão ditado a sua fortuna enquanto texto de referência para as demais histórias universais, bem como para a formação cultural no século seguinte. Ver Agneta SYLWAN, «Introduction»,in: PETRUSCOMESTOR,Scholastica Historia. Liber Genesis, Turnhout: Brepols (Corpus Christianorum. Continuatio Mediaevalis, 191), 2005. 2. Antonio SOLALINDE, «Introducción»,in:General Estória de Alfonso X.Primera Parte, Madrid: Centro de Estudos Históricos, 1930. 3. A descrição do manuscrito está disponível noCatálogo dos Códices da Livraria de Mão do Mos-teiro de Santa Cruz de Coimbra na Biblioteca Pública Municipal do Porto(Augusto Aires NASCIMENTOe José MEIRINHOS(coord.), Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1997). 4. Apesar da existência deste manuscrito, optou-se pela edição crítica da matéria do Génesis mais recente elaborada por A. SYLWAN(ed.),op. cit. 5. Samuel BERGER, «Les bibles castillanes», in:Romania, 23, Paris: Librairie A. Frank, 1899. 6. SeraÞm SILVA NETO,Bíblia Medieval Portuguesa, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1959. 7. Mário MARTINS,A Bíblia na Literatura Portuguesa medieval, Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979.
OS TESTEMUNHOS DA TRADUÇÃO PORTUGUESA
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8 9 de Castro , Augusto Aires do Nascimento e Horacio Santiago-Otero e 10 Klaus Reinhardt . Contudo, quase sempre se esquecem os testemunhos que remontam a traduções medievais da Sagrada Escritura em português: 11 aBíblia de Alcobaçae aBíblia de Lamego. As circunstâncias de difusão destes textos justiÞcarão, em parte, o desin-teresse da crítica, desinteresse esse que, presentemente, se começa a inverter. Note-se que um dos maiores problemas que se colocam à crítica de textos medievais portugueses é a sua transmissão através de testemunhos tardios. De facto, uma parte considerável de obras medievais chega aos nossos dias apenas sob a forma de manuscritos ou mesmo de impressos realizados três 12 ou quatro séculos mais tarde. Tal é o caso destas bíblias . Contudo, apesar das dúvidas que os testemunhos dos séculosXVI,XVII,XVIIIe por vezes mesmoXIXcolocam, estes são muitas vezes o único material disponível para conhecer textos produzidos em datas muito mais recuadas. O manuscrito daBíblia de Alcobaça, infelizmente, desapareceu; contudo, 13 subsiste uma cópia impressa, elaborada em 1829 por Frei Fortunato de São 14 Boaventura . Segundo o editor novecentista, tratava-se de um manuscrito em pergaminho, possivelmente datado do séculoXIV, que pertencia à biblioteca do mosteiro cistercience de Alcobaça, com anotações em latim, também estas do séculoXIV. Tanto as origens como os possíveis destinatários ou proprietários do manuscritoÞcam por identiÞcar. Note-se que a edição de que dispomos não é completamenteÞdedigna, uma vez que o editor admite ter feito algumas correcções ao texto, omitindo também a trans-crição do livro de Job que encerrava o volume, por falta de interpretação
 8. Joaquim Mendes de CASTRO(ed).,Bíblia de Lamego, (Ed. de autor), 1998.  9. Augusto Aires do NASCIMENTO, «Bíblia – tradução»,in: Giulia LANCIANIe Giuseppe TAVANI(ed.),Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa: Caminho, 1993. 10. Horacio SANTIAGO-OTERO, Klaus REINHARDT,La Biblia en la península ibérica durante la Edad Media (siglosXII-XV): el texto y su interpretación, Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra, 2001. 11. Além dos dois textos extensos, assinale-se a existência de um fragmento manuscrito do séculoXVIII na Biblioteca Pública de Évora (ms CXXIII 1-8) de que tomámos conheci-mento após a elaboração deste trabalho. A descrição do manuscrito em causa pode ser con-sultada no catálogoBITAGAP(ManID 3423), [URL: http://sunsite.berkeley.edu/Philobiblon/ BITAGAP/1037.html]. 12. Por serem mais uma tradução daVulgatalatina do que uma história universal do género daHistoriaScholastica, e para facilitar a identiÞcação dos textos, optámos por esta designação em lugar de «Histórias de Abreviado Testamento Velho», tal como são conhecidos os teste-munhos de Alcobaça e Évora. 13. Frei Fortunato de SÃOBOAVENTURA,Colecção de inéditos portugueses dos séculosXIVeXV, Porto: Edições Comemorativas dos Descobrimentos Portugueses, 1988. 14. Em 1959, SeraÞm da Silva Neto reedita a transcrição de Frei Fortunato, reavaliando os erros de leitura evidentes presentes na edição oitocentista.
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15 teológica convenientemente profunda . A tradução acaba assim no livro de Macabeus, que precede o livro de Job, omitido pelo editor. Apesar dos problemas que esta edição apresenta, o texto revela-nos uma interessante tradução do Antigo Testamento que inclui, de forma bas-tante elaborada, informações provenientes daHistoria Scholasticade Pedro Comestor. Com efeito, e sobretudo para os primeiros capítulos do Génesis, prefere-se muitas vezes o texto do autor francês em detrimento do texto bíblico, sendo retomada maisÞelmente a Bíblia após a história de Noé. AHistoria Scholasticasó voltará a ser ostensivamente reutilizada aquando do relato da história de Alexandre, o Grande, incluida no livro de Ester. Contudo, mesmo nos momentos em que se apresenta uma tradução literal da Bíblia, surgem dados provenientes daHistoria Scholastica. 16 ABíblia de Lamego, tradução do Antigo Testamento que inclui também excertos da obra de Pedro Comestor, conserva-se num códice do séculoXVI, todo em papel e em letra redonda ou bastarda, pertencente a Francisco de Sá, que o editor, Mendes de Castro, identiÞca como sendo Francisco Sá de Miranda cujas relações familiares com a Sé de Lamego são conhecidas. As marcas de água do papel são idênticas às da impressão daVita Christi(1495), o que conduz o editor a considerar a hipótese de o manuscrito ter sido elaborado ainda no séculoXV. Tal como naBíblia de Alcobaça, apenas é traduzido o Antigo Testamento até ao livro dos Macabeus, que mais uma vez precede o livro de Job. O elemento mais supreendente do códice lamecense é a inclusão, noÞnal do volume, de uma tradução para português doPirqué Abot, sentenças sapienciais judaicas sobre a prática 17 da justiça . Esta tradução não parece ter sido inserida posteriormente no códice, uma vez que a letra e o papel são os mesmos. A partir da his-tória de Noé, no Génesis, aBíblia de Lamegoé bastante próxima daBíblia de Alcobaça. O redactor do séculoXVImodernizou ainda o léxico, mais latinizante do que o da versão cistercience, sendo a organização dos capí-tulos também distinta: o manuscrito quinhentista secciona mais o texto, recomeçando a numeração no início de cada narrativa. 18 Conforme a crítica tem vindo a notar , existe uma relação entre as duas bíblias portuguesas, que provêm de um antecendente comum. Porém,
15. Embora aBíblia de Alcobaça, tal como Frei Fortunato a apresenta, não seja um testemunho Þel, dever-se-á notar que o editor, apesar dos seus pudores teológicos, conserva na transcrição passagens que lhe repugnam, conforme aÞrma em nota. 16. Foi utilizada a transcrição de J. Mendes de CASTRO(ed.),Bíblia de Lamego. 17. Veja-se a transcrição e estudo de J. Mendes de CASTRO, «Versão Medieval Inédita do Pirqué Abot»,Humanística e Teologia, 10 (1), Porto: Faculdade de Teologia, 1989. 18. Com efeito, já o primeiro editor, Frei Fortunato de São Boaventura, constatou a fami-liaridade entre o testemunho que transcreveu e a versão lamecense, levando a que os principais investigadores a debruçar-se sobre este assunto, S. Silva NETO,op. cit., e J. Mendes de CASTRO(ed.),Bíblia de Lamego, também equacionassem a relação entre os dois testemunhos.
OS TESTEMUNHOS DA TRADUÇÃO PORTUGUESA
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entre o texto deLamego e o de Alcobaça, não se pode determinar qual das duas traduções adopta a lição mais antiga, se uma actualiza ou conserva, se outra ampliÞca ou reduz o arquétipo. As principais divergências entre as versões surgem no início, na passagem correspondente aos primeiros capítulos do Génesis, começando a convergir, apesar de algumas variações de vocabulário, a partir da história de Noé, após a qual ambas traduzem 19 Þelmente aVulgata, incluindo todavia algumas informações daHistoria Scholastica. Tendo em conta a já referida inclusão doPirqué AbotnaBíblia de Lamego, pode considerar-se uma eventual inßuência judaica aquando da realização da cópia, uma vez que não se sabe se o manuscrito perdido daBíblia de Alcobaçachegou a ter este texto. Com os elementos disponíveis adianta-se uma ainda muito provisória relação entre os testemunhos. Além daBíblia de Alcobaça, foram rapidamente consultados o fragmento de Évora, datado do séculoXVIII, e um fragmento 20 recém-descoberto , que datará do séculoXIVe está conservado na Biblioteca da Faculdade de Direito de Lisboa. Tal como o exemplar setecentista, este novo manuscrito pertencerá ao mesmo ramo daBíblia de Alcobaça, uma vez que após a colação de um episódio do Génesis —o pecado original e conse-quente queda— se veriÞcou que os dois fragmentos contém matéria exclu-siva do testemunho alcobacence e omissa naBíblia de Lamego, conforme será exposto adiante. Com estes elementos propomos o seguintestemma codicum:
*Bibliade Alcobaça
Biblia de Alcobaça(ed. Frei Fortunato)
α
Framento de Évora
Ω
Framento de Lisboa
β
Biblia deLamego
19.Biblia sacra juxta vulgata, preparada por Roger GRYSON, Stuttgart: Deutsche Bibel-gesellschaft, 1994. 20. Foi com grande satisfação que recebemos de Pedro Pinto, do Centro de Estudos Históricos da UNL e colaborador do projectoBITAGAP, a informação da descoberta deste precioso fragmento da tradução da obra de Pedro Comestor para português. Agradecemos ao investigador a amabilidade de facultar o acesso às transcrições dos referidos manuscritos.
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Advogamos a existência de uma primitiva tradução da Bíblia em latim, que provavelmente incluiría matéria proveniente de Pedro Comestor. Deste texto surgiriam dois ramos:α, de onde deriva a família daBíblia de Alcobaça, e de onde descenderão também os outros fragmentos conhecidos, 21 conserva ou acrescenta mais matéria do autor francês ; eβ, cujo teste-munho único é a cópia conservada em Lamego, versão onde aHistoria Scholasticaestá menos presente. Cremos ser esta, actualmente, a opção de transmissão textual mais razoável partindo dos seguintes pressupostos: a derivaçãoαé válida se, efectivamente, as lições dos fragmentos de Évora e da Faculdade de Direito de Lisboa revelarem versões irmãs do manuscrito perdido de Alcobaça, como parece suceder pela colação parcial realizada; as características redaccionais daBíblia de Lamego, que inclui um texto que provavelmente seria alheio a uma primeira tradução da Bíblia com matéria provinda daHistoria Scholastica, oPirqué Abot, apontam para que o testemunho lamecense seja uma cópia de uma versão paralela aα, que, durante a transcrição quinhentista, foi enriquecida com uma tradução do texto hebraico. Devido às divergências serem mais assinaláveis no livro do Génesis, a nossa atenção centrar-se-á nos primeiros capítulos das bíblias de Alcobaça e de Lamego. A partir da leitura comparada dos dois textos, estes revelam alguns dados sobre as circunstâncias ideológicas onde terão sido copiados e lidos. Os diferentes recursos àHistoria Scholastica, por pequenos que possam parecer, produzem leituras divergentes sobre o mesmo assunto, o que sucede num episódio fundamental do Génesis, onde opções de tradução divergentes conduzem a implicações doutrinárias heterogéneas. Trata-se da narração da criação da mulher por Deus, do pecado do casal original e da subsequente queda de Adão e Eva. Aqui, aBíblia de Alcobaçarecorre à Historia Scholastica, enquanto que aBíblia de Lamegotraduz sistematicamente aVulgata, exceptuando um muito breve elemento recolhido na obra de Pedro Comestor. Nota-se uma maior proximidade entre aBíblia de Lamegoe aVulgatae a Bíblia de Alcobaçae aHistoria Scholastica. Desde o início, a escolha de comentá-rios do autor francês revela uma interessante tendência, por parte daBíblia de Alcobaça, de esclarecer e evitarlociproblemáticos provindos da leitura do Génesis. Por outro lado, há uma tendência para tornar a imagem de Eva mais negativa, processada através do recurso a interessantes comen-tários de Pedro Comestor. Vejamos os textos:
21. Os mesmos elementos distintivos da passagem do Génesis tratada neste trabalho estão presentes nestas três versões.
Vulgata
OS TESTEMUNHOS DA TRADUÇÃO PORTUGUESA
Dixit quoque Dominus Deus: “Non est bonum esse hominem solum; faciam ei adiutorium simile sui”. Formatis igitur Dominus Deus de humo cunctis animantibus agri et universis volatilibus caeli, adduxit ea ad Adam, ut videret quid vocaret ea; omne enim, quod vocavit Adam animae viventis, ipsum est nomen eius. Appellavitque Adam nominibus suis cuncta pecora et universa volatilia caeli et omnes bestias agri; Adae vero non inveniebatur adiutor similis eius. Immisit ergo Dominus Deus soporem in Adam. Cumque obdormisset, tulit unam de costis eius et replevit carnem pro ea; et aediÞcavit Dominus Deus costam, quam tulerat de Adam, in mulierem et adduxit eam ad Adam.
Historia Scholastica
Sed ne videretur Adae superßua mulieris formatio, putanti sibi in animantibus esse simile, ideo adduxit Deus ad Adam omnia terrae animantia et aeris. In quibus intelligenda sunt, et aquae animantia […]. Cumque obdormisset, tulit Dominus unam de costis ejus, carnem scilicet et os, et aediÞcavit ministerio angelorum illam in mulierem, de carne carnem, de osse ossa faciens, et statuit eam ante Adam.
Bíblia de Alcobaça
[…] pera nom cuidar Adam, que a molher era a el sobeja, teendo que en as animalhas da terra averia alguã semelhavil a el, adusse Deus a Adam todalas animalhas da terra, e aas aves do ceeo, e nom foi achado semilhavil ajudoiro a Adam. Entom meteu Deus sono em Adam, e dormindo Adan, tomou Deus huã costa dele, e feze dela molher, e pose-a ant Adam.
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Bíblia de Lamego
Disse tambem Deos dizemdo: Nam e boõ ser o homem soo; façamos-lhe ajuda semelhante a elle. Asi que formadas todallas animarias da terra e as aves do çeeo, o Senhor Deos as trouxe a Adam pera que vise como lhes chamavam, e tudo o que Adam chamou da alma que vivia aquele era o seu nome. E chamou Adam per seus nomes todas as animarias, a todas as aves do çeeo e a todas as bestas da terra. Adam em verdade nam se achava ajudador a elle semelhante. E lançou o Senhor Deos sono em Adam e como quer que domisse tirou-lhe huũa das suas costas e emcheo de carne por ella.
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No início da passagem seleccionada, detecta-se, por um lado, o subli-nhar da origem da mulher, que seria, de acordo com o relato genesíaco, «sobeja» ao corpo masculino, bem como a motivação divina para a criação de Eva, para que Adão não viesse a procurar por entre os animais a sua companheira.
Vulgata
Et serpens erat callidior cunctis animantibus agri, quae fecerat Dominus Deus. Qui dixit ad mulierem: “Verene praecepit vobis Deus, ut non comederetis de omni ligno paradisi?”
Historia Scholastica
Serpens erat callidior cunctis animantibus terrae […]. Lucifer (enim dejectus a para-diso spirituum,) invidit homini quod esset in paradiso corporum, sciens si faceret eum transgredi, quod et ille ejiceretur. Timens vero deprehendi a viro, mulierem minus providam et certam, in vitiumßecti aggressus est. Et hoc per serpentem, quia tunc serpens erectus est ut homo, quia in maledictione pros-tratus est, et adhuc, ut tradunt, phareas erectus incedit. Elegit etiam quoddam genus serpentis, ut ait Beda, virgineum vultum habens, quia similia similibus applaudunt, et movit ad loquen-dum linguam ejus, tamen nescientis, sicut, et per fanaticos, et energumenos loquitur, nescientes, et ait: Cur praecepit vobis Deus ut non comederetis de omni ligno paradisi, id est, ut comederetis de ligno, sed non de omni.
Bíblia de Alcobaça
A serpente era mais arteira, que todalas animalhas da terra; e Lucifer avia grande emveja ao homem, porque era posto em no paraíso, e trabalhou-se de catar maneira, per que o fezesse lançar fora. Entom falou pela boca da Serpente aa molher, e disse a Serpente aa molher: Porque vos defendeu Deus, que nom comesedes do fruito de todo o lenho do paraíso?
Bíblia de Lamego
Porem a serpemte era mais qualida de todas as animarias da terra as quaaes o Senhor Deos Þzera a qual dise a molher: Porque vos amoestou Deos que nam comesseys de todo arvore do paraysso?
OS TESTEMUNHOS DA TRADUÇÃO PORTUGUESA
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Marcada pelo orgulho, Eva encontra-se na origem da queda, não sendo Adão nem a serpente responsabilizados pelo erro. Através de Lúcifer, Pedro Comestor e o redactor de Alcobaça, que o segue, justiÞcam a acção da serpente, aproximando em simultâneo a mulher do Mal. Ainda que se mantenha a caracterização da serpente tal como esta surge naVulgata, as suas acções maléÞcas são provocadas por Lúcifer, desculpando-se, por isso, o animal. Contudo, note-se que aBíblia de Alcobaçanão chega a incluir as considerações presentes naHistoria Scholasticasobre a fragilidade da mulher, mais susceptível ao pecado do que o homem. Outro sentido toma a escolha daBíblia de Lamegoque, seguindo aVulgata, não atribui a justiÞcação das acções da serpente à inßuência de Lúcifer.
Vulgata
Dixit autem serpens ad mulierem: “Nequaquam morte moriemini! Scit enim Deus quod in quocumque die comederitis ex eo, aperientur oculi vestri, et eritis sicut Deus scientes bonum et malum.”
Historia Scholastica
Nequaquam moriemini: imo Deus nolens vos similari ei in scientia, et sciens quod cum comederetis ex ligno hoc eritis sicut dii, scientes bonum et malum, quasi invidus prohibuit. Et elata mulier volens similari Deo, acquievit.
Bíblia de Alcobaça
E disse a Serpente: Non he asi, ca non morreredes, mas se o comerdes, seeredes asi como Deus sabedores de bem e de mal. Entom a molher com soberva querendo seer semilhavil a Deus, outorgou o que lhe disse a Serpent, e viu como o lenho era fremoso, e deleitavil, e boõ pera comer, e tomou do fruito dele, e comeu, e deu dele a seu marido Adam.
Bíblia de Lamego
Disse mais a serpemte a molher: Em nenhuũa maneira morrerás; mas sabe Deos que em qualquer dia que comerdes delles se abrirám vosos olhos e sereis asy como os deosses que sabem o bem e o mal. Por tamto vio a molher que fosse boõ o arbore pera comer e fezmosto [fermoso] aos olhos e deleitavel em ser visto. E tirou do fruyto delle e comeo. E deo a seu marido o qual comeo.
Finalmente, é o orgulho que provoca as acções de Eva. O seu desejo de se tornar idêntica a Deus, como indica Pedro Comentor, parece com-provar o seu carácter perverso. Novamente, a tradução alcobacense recolhe a informação presente naHistoria Scholastica. Ainda que omitindo o comen-tário sobre a soberba feminina, aBíblia de Lamegoexcepcionalmente inclui
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matéria do texto do autor francês, embora continue a ser traduzida sistema-ticamente aVulgata: trata-se da promessa da serpente que seduz Adão e Eva com a sabedoria dos deuses. Com excepção deste elemento, o texto equivale quase completamente àVulgata, excepto para o interessante plural «Deus», cuja intencionalidade não se pode conÞrmar.
Historia Scholastica
Et aperti sunt oculi eorum, id est visu tale quid perceperunt, quod non ante, disconvenientiam scilicet nuditatis. Vel non de oculis corporis intelligendum est cum dictum sit: Vidit mulier lignum, etc. Non enim accesserunt ad lignum, quasi palpones. Sed oculis eorum, dicimus concupiscentiam et cognitionem ejus. Erant enim in eis naturales motus con-cupiscentiae, sed repressi, et clausi, ut in pueris usque ad pubertatem, et tunc tanquam rivuli aperti sunt, et ceperunt moveri, et diffundi, quos cum prius in se esse non sensissent, tunc experti sunt, et cognoverunt eos. Et sicut inobedientes fuerunt suo superiori, sic et membra coeperunt moveri contra suum superius, id est rationem. Et primum motum concupiscentiae contrarium rationi senserunt in genitalibus, et sua contra se moveri videntes, erubuerunt. Unde, et illa pudenda dicta sunt. Caetera quidem membra ad nutum hominis stant, aut moventur, pudenda non. Quia vero haec est porta propaginis, et inobe-dientia membrorum, quasi signum inobedientiae parentum scriptum est in porta. Et cognoverunt se nudos, id est disconvenire pudenda, id est erubuerunt videri pudenda.
Bíblia de Alcobaça
[…] e logo forom abertos os olhos de Adam, e da sua mulher, e conhecerom e virom que andavam nuus, e ouverom vergonça. Entom sentirom primeiro o movimento contrairo aa razom en os membros da geeraçom. Entom fezerom vistiduras pequenas de folhas deÞgueira pera cobrir as partes vergonçosas.
Por outro lado, aBíblia de Alcobaçarecupera daHistoria Scholasticaa insis-tência sobre a dimensão carnal do pecado original. Não se trata apenas da descoberta da nudez mas sobretudo da experimentação do desejo sexual. O eufemismo contruído sobre uma estrutura quiasmática equivale ao texto latino, embora este seja mais longo e explícito. Em português traduz-se «genitalia» por «membros da geeraçom». Tais considerações estão omissas naVulgatae naBíblia de Lamego.
OS TESTEMUNHOS DA TRADUÇÃO PORTUGUESA
Historia Scholastica
Vocavitque Dominus virum, scilicet, cui dederat praeceptum, et increpando, non ignorando, ait: Adam, ubi es? quasi dicat: Vide in qua miseria es.
Bíblia de Alcobaça
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[…] chamou Deus o homem, e disse: Adam hu és, come quem diz: Vee em qual mizquindade hes.
Constata-se que novamente as versões portuguesas da Bíblia continuam a divergir. ABíblia de Alcobaça, marcada pelas preocupações exegéticas, encontra naHistoria Scholasticaas respostas para as interrogações que o texto daVulgatacoloca. Ao seguir o texto francês, a tradução alcobacense garante o sentido no qual se dirigem as leituras da Bíblia. Deste modo, integra-se um comentário de Pedro Comestor que justiÞca a interrogação que Deus coloca a Adão. Novamente, tal não acontece no texto lamecense, que se limita a traduzir aVulgata.
Historia Scholastica
Et ait Dominus. Quis hoc indicavit tibi, nisi quod de ligno comedisti? Ille vero non humiliter conÞtens, sed peccatum in uxorem retorquens, imo in ipsum mulieris datorem, ait: Mulier quam de-disti mihi sociam, dedit mihi de ligno, et comedi. Et ad mulierem ait: Quare hoc fecisti? Nec ipsa se accusavit, sed obliquavit peccatum in serpentem, ta-cite vero in Auctorem serpentis. Ser-pens vero non interrogatur, quia per se hoc non fecerat, sed diabolus per eum.
Bíblia de Alcobaça
[…] e disse nostro Senhor: Quem te ensinou que eras nuu, senon porque co-mest do lenho que te eu defendi? E disse Adan: Senhor, a molher, que me dest, me enganou; e disse Deus aa molher: Porque fezeste esto? E ela disse: A Ser-pent me enganou. Nostro Senhor non preguntou a serpente, porque ela nom fezera esto per si, mas o diabo o fezera por ela.
Finalmente, também na punição de Deus se detectam duas variantes, cujas diferenças são notáveis: por um lado, aVulgatae aBíblia de Lamego; por outro lado, aHistoria Scholasticae aBíblia de Alcobaça. Tal como na obra de Pedro Comentor, o texto proveniente do mosteiro cisterciense, tal como oÞzera anteriormente, não atribui a culpa à serpente mas ao diabo que encontra na mulher uma vítima privilegiada, o que está bastante próximo do texto francês. Novamente aBíblia de Lamego, seguindo aVulgata, não inclui esta informação. Da comparação entre os dois textos portugueses torna-se saliente que ambos enfatizam o retrato da mulher enquanto motor para a corrupção. Porém, ao seguir aHistoria Scholastica, o redactor daBíblia de Alcobaçaproduz um texto mais misógino, oferecendo um retrato de Eva mais negativo do que a passagem equivalente daVulgata. A opção do redactor de Lamego, por outro lado, não interfere com o que aÞrma a Bíblia em latim sobre
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